terça-feira, 18 de novembro de 2008

alcoolismo, estigmas, existencialismo, fim de semestre.

(...) o Genoma Humano fez cintilar a expectativa de que uma gama de problemas que costumamos atribuir à cultura ou à educação, isto é, à formação humana do ser humano, poderia ter bases genéticas - e assim as poderíamos identificar e quem sabe resolver. Por isso é que pode mudar a linha divisória entre natureza e cultura. As escaramuças de fronteiras continuariam, mas o traçado delas seria outro. Espanta-me que essa não seja a principal discussão hoje nas ciências humanas. Se o conjunto de propósitos reunido no Projeto Genoma Humano se confirmar, o papel das humanas diminuirá. As disciplinas mais afetadas serão provavelmente as mais ligadas à idéia de cultura, a antropologia e a psicanálise. Por isso mesmo, elas deveriam conhecer e discutir melhor o DNA.

Evidentemente, se as expectativas do projeto derem certo, deveremos ser os primeiros a aceitar seus resultados. Não se trata de combatê-los em nome de qualquer corporativismo de área. Mas precisamos discutir o que isso significa.E por isso devemos explicitar os argumentos que fazem muitos de nós sermos algo céticos em relação às promessas do Genoma Humano. Em primeiro lugar, a publicação dos seus resultados em fevereiro de 2001 foi um anticlímax. Esperava-se que a decifração do genoma resolvesse uma série de mistérios sobre o ser humano; viu-se que falta ainda muita pesquisa. Por isso, embora a mídia de divulgação científica não tenha propriamente feito a crítica daquelas expectativas, ela discretamente reduziu o alcance dado a elas. Três anos atrás, o Genoma Humano aparecia como uma enorme promessa, um divisor de águas; hoje, um pouco menos.

Mas ele haverá de trazer resultados, que espero permitam vencer muitas doenças e insuficiências humanas. Pessoalmente, sou entusiasta dessas perspectivas. Porém, devo expor qual o grande argumento para o ceticismo das humanas: há uma enorme tendência do ser humano a querer considerar-se coisa, objeto. Aceitar que somos indeterminados naturalmente, que seremos lapidados pela educação e a cultura, que disso decorrem diferenças relevantes e irredutíveis aos genes é muito difícil. Significa aceitarmos que há algo muito precário na condição humana. Parte pelo menos dessa precariedade ou indeterminação, alguns chamarão de liberdade . Porém, nem mesmo a liberdade é tão valorizada quanto se imagina. Ela implica responsabilidades.

E diante disso é comum desejar-se algo que resolva nossos problemas independentemente de nós mesmos. São inúmeros os relatos de psicoterapeutas, psiquiatras e psicanalistas sobre pessoas que querem "curar" seus problemas psíquicos com um remédio. São também incontáveis os doentes que fazem exame após exame sem encontrar etiologia física para seus males, levando o próprio médico a recomendar uma terapia. Parece que se busca conforto na condição de coisa. Se eu for um objeto, isto é, se eu for natureza , meus males independem de minha vontade. Aliás, o que está em discussão não é tanto o que os causou, mas como resolvê-los: se eu puder solucioná-los com um remédio ou uma cirurgia, não preciso responsabilizar-me, a fundo, por eles. Tratarei a mim mesmo como objeto.

A postura das ciências humanas e da psicanálise é outra, porém. Muito da experiência humana vem justamente de nos constituirmos como sujeitos. Esse papel é pesado. Por isso, quando ele entra em crise - quando minha liberdade de escolher amorosa ou política ou profissionalmente resulta em sofrimento -, posso aliviar-me, procurando uma solução que substitua meu papel de sujeito pelo de objeto. Um antidepressivo pode ter essa singela função. Quando tomo um Prozac ou um Lexotan, renuncio à posição de sujeito da minha vida psíquica e converto-a em objeto de ordem natural.

Sabemos todos, ainda mais numa sociedade estressada e histérica como a nossa, como é difícil sustentar a responsabilidade e a liberdade pela vida pessoal. Daí que se deseje a passividade, a renúncia à liberdade (...)



Renato Janine Ribeiro é professor titular de Ética e Filosofia Política da Universidade de São Paulo e autor, entre outros livros, de A Sociedade contra o Social - o Alto Custo da Vida Pública no Brasil.


*texto publicado na íntegra pela revista Fapesp nº86.

3 comentários:

 ­adan ­arruda. disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
 ­adan ­arruda. disse...

lí uma vez que um doente nunca se itediará, pois ele tem uma 'coisa que o move: a sua doença. no caso ele torna-se objeto e a doença o sujeito.

Guiga disse...

isso me faz lembrar do Habermans que já afirmava que no trajetória do ocidente houve uma subsunção da razão ao método. isso também me faz pensar em Doistóievski que ao contrário do que a maioria pensa não era contra revolucionário, ou seja, ele não rejeitava só o socialismo, mas tudo que esta no pacote da cultura ocidental. uma ciência que se sobrepõe ao espírito.