quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

terça-feira, 29 de dezembro de 2009


o ar estava úmido: sentiu que iria chover. caminhava sobre a linha hipnótica do meio-fio. pensou em sua mãe. depois no enxame de abelhas que a atacou durante a infância. a mãe pusera-lhe argila nas ferroadas a fim de absorver o veneno. teve vontade de mergulhar para colher seixos, como fazia à época das abelhas - se bem que aquele rio gelado e cheio de galhos agora não parecia o mesmo. um relâmpago e começou a chover.

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

não quero que shirley desapareça

Shirley é o tipo de pessoa especializada em perder aviões
algumas pessoas realmente nunca conseguem partir
tudo se transforma previsivelmente em desculpas
(sete doses de tequila
e um flerte com um argentino chamado Peco
não foram suficientes para impedir uma salsa
às cinco da manhã)
Embora Shirley não consiga permanecer por muito tempo
no mesmo lugar
é o tipo de pessoa que nunca consegue dizer adeus
seus olhos estão sempre fechados
sonhando com o dia em que possa simplesmente ficar
sem ressalvas.
Shirley bebeu dezenas de cervejas com sua amiga Rebeca
Rebeca acha que uma amizade se faz com muitos brindes
e eventuais pedidos de desculpas
principalmente após algumas doses de tequila
e um discurso fervoroso em defesa de Caio Fernando Abreu

amizade é algo como carregar uma bomba armada dentro do coração




luana vignon

terça-feira, 24 de novembro de 2009

.



mobiliando o silêncio
com aquários vazios

vê-se inexistente
uma cor na parede

o que se vê
é um pássaro com sede

de poleiro em poleiro
fazendo voar a gaiola



de novo, rodrigo de souza leão

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

aqui 2



Sou maldito de boutique
Mendiguei no meu quarto
Na sujeira das cinzas
Entre latas de cerveja

Fiz de toda a prisão
Um poema feito pele
À moda das cicatrizes
Que eu deixei em mamãe

Amo toda a profundidade
Mesmo aquelas abissais
E desconfio de mim tanto
Que paro o poema aqui



rodrigo de souza leão
(na foto: ângela ro ro. achei que eles podiam ter se conhecido).

sexta-feira, 30 de outubro de 2009

o rato e a comunidade

4

Desconhecido que atravessas a rua,
Que há de comum entre mim e ti?
A mesma solidão e a mesma roupa.
Procuras consolo, mas não podes parar.
És o servo da máquina e do tempo.
Mal sabes teu nome, nem o que desejas neste mundo.
Procuras a comunidade de uma pessoa,
Mas não a encontras na massa-leviatã.
Procuras alguém que seja obscuro e mínimo,
Que possa de novo te apresentar a ti mesmo.




Murilo Mendes


segunda-feira, 26 de outubro de 2009

mundo pequeno


VI
Toda vez que encontro uma parede
ela me entrega às suas lesmas.
Não sei se isso é uma repetição de mim ou das
lesmas.
Não sei se isso é uma repetição das paredes ou
de mim.
Estarei incluído nas lesmas ou nas paredes?
Parece que lesma só é uma divulgação de mim.
Penso que dentro de minha casca
não tem um bicho:
Tem um silêncio feroz.
Estico a timidez da minha lesma até gozar na pedra.
.
.
do cuiabano Manoel de Barros, em "O Livro das Ignorãças".

terça-feira, 20 de outubro de 2009

Aquário

Signo colorido da
geometria íntima da
gaiola vítrea

em toda a sua
margem
cúbica

enquanto esbarra
em oceano
restrito

parece que me
contempla (o peixe)
a mim (seu

incompetente
salvador
deslumbrado) –

ondula mínima
mente a água:
é dolorido

todo
universo
finito



wilson nanini

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

terça-feira, 29 de setembro de 2009




Edward Hopper
, 1924.

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

ausência

tenho te escrito com calma
cartas em um caderno azul
arranco da espiral e não posto
por preguiça ou nem morta
tenho medo da espera
durante dias ou semanas um animal horrível
(espécie de raposa) vai me perseguir
por dentro, ou serei eu mesma
(um rato?) a me roer
enquanto a resposta não chegar
perco muito tempo tentando
dar nomes aos bichos
que sobem a cortina do quarto



Alice Sant'Anna

terça-feira, 1 de setembro de 2009

O enigma de Hempel

todo corvo é preto
e cada corvo preto
confirma o negrume dos corvos.
se todo corvo é preto então
todo não-preto é não-corvo
e se todo não-preto é não-corvo
então todo corvo é preto.
todo corvo é preto
todo não-preto é não-corvo
e cada não-preto não-corvo
- cada folha verde cada onda
azul cada gota de sangue -
prova o negrume dos corvos.



antônio cícero

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

As portas batem as toalhas voam
O dia se esbaqueia como um pássaro dentro da casa
(ou uma lembrança dentro da casa)
Véspera do dia em que de repente enlouquecerei.





ferreira gullar

quinta-feira, 23 de julho de 2009

quarta-feira, 8 de julho de 2009

deslumbre

"Os produtos naturais usados pelos povos siberianos para fins medicinais ilustram, por sua definição precisa e pelo valor específico que lhes é dado, o cuidado, a engenhosidade, a atenção ao detalhe e a preocupação com as diferenças que devem ter empregado os observadores e teóricos nesse tipo de sociedade: aranhas e vermes brancos engolidos (itelmene e iakute - esterilidade); gordura de escaravelho negro (ossete - hidrofobia); barata esmigalhada, fel de galinha (russos de Surgut - abcessos e hérnia); vermes vermelhos macerados (iakute - reumatismo); fel de solha (buriate - doenças dos olhos); cadoz, caranguejo de água doce, engolidos vivos (russos da Sibéria - epilepsia e todas as doenças); toque com um bico de picanço, sangue de picanço, insuflação nasal de pó de picanço mumificado, ovo do pássaro kouchka sorvido (iakute - contra dor de dentes, escrófulas, doenças dos cavalos e tuberculose, respectivamente); sangue de perdiz, suor de cavalo (oirote - hérnias e verrugas); caldo de pombo (buriate - tosse); pó das patas do pássaro tilégous moídas (kazak - mordida de cão raivoso); morcego seco pendurado no pescoço (russos do Altai - febre); insuflação da água proveniente do ninho do pássaro remiz (oirote - doenças dos olhos). Somente entre os buriates e limitando-se ao urso, a carne deste possui sete virtudes terapêuticas diferentes; o sangue, cinco; a gordura, nove; o cérebro, 12; a bile, 17; e o pêlo, duas. Também os Kalar recolhem os excrementos empedrados do urso no fim da hibernação para curar prisão de ventre (Zelenine 1952, 47-59)."





em O pensamento Selvagem, de Claude Lèvi-Strauss (A ciência do concreto, 15-49).

terça-feira, 7 de julho de 2009



caco galhardo, via luana vignon

sexta-feira, 3 de julho de 2009

minha anã

perdi a deixa de colocar a minha música preferida do Tim Maia naquele post que falava dele.
em tempo : oiçam!


(as primeiras 150 pessoas que decifrarem a letra ganham uma bolsa num curso básico de inglês).

terça-feira, 23 de junho de 2009

Rói

Rói qualquer possibilidade de sono
essa minimalíssima música
de cupins esboroando
tacos sob a cama

imagino a rede de canais
que a perquirição predatória
possa ter riscado
pelo madeirame apodrecido

se aguço o ouvido
capto súbito
o mundo dos vermes




Carlito Azevedo

terça-feira, 9 de junho de 2009

"É difícil observar no Brasil uma situação onde uma pessoa capaz de realizar bem alguma tarefa - tocar bem um instrumento, dançar, cantar, nadar, etc. - não demonstre um falso recato ao ser solicitada a fazer uma demonstração de suas qualidades. Há duas categorias chulas para tais atitudes compulsivas no Brasil, denominadas: "fazer chiqué de polaca", ou seja, proceder como uma prostituta polonesa fingindo ser uma virgem, ou, mais claramente, fazer "cu doce", expressão com o mesmo sentido que significa fazer-se difícil. O simbolismo sexual das duas expressões certamente mereceria maior atenção, mas pode-se sugerir que a equação subjacente ao simbolismo é aquela que denota uma visão negativa do feminino, pois só as mulheres necessariamente devem negar as coisas boas que podem realizar. Por outro lado, quem sempre se dispõe a fazer o que sabe na primeira solicitação é sempre classificado como "apresentado" e "oferecido".



nota de rodapé em Ensaios de Antropologia Estrutural - O carnaval como um Rito de Passagem, de Roberto da Matta.

quinta-feira, 21 de maio de 2009



"Tim Maia veio morar aqui na esquina de casa! Porra! E me ligava toda madrugada: "Filho da puta! Ouve o que é som, seu veado de merda, seu branco vendido!" Aí botava o "Descobridor dos sete mares" para eu ficar ouvindo. Desligava e 5 min depois ligava de novo: "Filho da puta, veado e punheteiro! Ouve o que é som". E botava "Azul da cor do mar". Chegava uma hora que eu tinha de parar de atender o telefone (risos). De vez em quando ele aparecia aqui no portão. Mas teve um dia que eu tentei enganar ele. Estava chegando de viagem, cansado pra caramba. Tocou o telefone. Atendi, percebi que era ele e fingi que era o meu filho. (Erasmo imita voz de criança): "Bicho, o meu pai não tá, ele tá viajando". E ele respondeu: "Vai tomar no cu, seu veado de merda, o filho do Erasmo não fala "bicho", fala "cara." (gargalhadas)".
.no blog do mário bortolotto.

terça-feira, 19 de maio de 2009

Studio sulla grande allegria degli uomini di numeri


tanto cari
i sofà

ma ancora le sedie
a dondolo

sono tante parole
nel mondo tanto suono

non capisco perché
anche tante inferriate

sono triste
finchè passa

un corri corri
di bambini.

///

estudo sobre a grande alegria dos homens de números


tão queridos
os sofás

mais ainda as cadeiras
de balanço

é tanta palavra
no mundo tanto som

não entendo porque
tanta grade também

estou triste
até passar

uma correria
de crianças.




bruna beber em italiano, por rosella

terça-feira, 12 de maio de 2009

r.c.

os grandes colecionadores de mantras pessoais não saberão a metade/ do que aprendi nas canções/ é verdade/ nem saberão/ descrever com tanta precisão/ aquela janela da bolha de sabão/meu bem eu li a barsa/ eu li a britannica/ e quando sobrou tempo eu ouvi/ a sinfônica/ eu cresci/ sobrevivi/ a privada de perto/ muitas vezes eu vi/ mas a verdade é que/quase tudo aprendi/ ouvindo as canções do rádio/ as canções do rádio/quando meu bem nem/ a verdadeira maionese/ puder me salvar/ você sabe onde me encontrar/e se a luz faltar/ num cantinho do meu quarto/ eu vou estar/com um panasonic quatro pilhas AAA/ ouvindo as canções do rádio



angélica freitas

segunda-feira, 4 de maio de 2009

Gramaticais - V

(Mas nada disso faz sentido,
porque é concreto, é existente.
Só significa o construído,
o que é postiço e excedente.

E quanto ao mundo - o que independe
dos artefatos, o que é dado
a todos e ninguém entende -
o mundo vai bem, obrigado,

e não quer dizer coisa alguma.
Porém o jogo continua,
como sempre, é claro - talvez

um pouco mais seco, mais duro,
sim, um pouco mais inseguro.)
Pronto - Agora é a sua vez.





em Tardes de Paulo Henriques Britto

quinta-feira, 30 de abril de 2009

notas para um livro bonito

espíritos de
poetas simbolistas se movimentam
nas garagens dos prédios e
corredores de hospitais
em madrugadas de gelo.
é produto de zonas sombrias
recônditas
o silêncio que tememos.
estamos desprotegidos
mesmo no lado dentro.
sabemos que a carcaça que envolve
certamente é forte
mas os órgãos
facilmente poderão
ser esmagados igual frutas.





luis felipe leprevost,
no blog da luana vignon.

segunda-feira, 27 de abril de 2009

quinta-feira, 23 de abril de 2009

O que é que falam, as pessoas que falam sozinhas
na fila do Poupa-Tempo?
O que cantam, as pessoas com seus mp3 players,
caminhando na Estação da Luz
às escuras?
O que elas procuram?
Enquanto os leds dos painéis pingam senhas vagarosamente,
dona Luzia pergunta-se em voz alta quanto tempo poupará,
esperando uma hora e meia na fila.
O que dona Luzia poderá fazer com seu tempo poupado,
ver o programa do Ratinho?
Ajudar seu pastor na coleta da igreja?
Perguntas lançadas ao ar-condicionado permanecem sem respostas.
Dona Luzia folheia a “Harpa Cristã”, onde encontra alento, mas também
os telefones de suas filhas anotados nas páginas em branco.
Nada mais está em branco agora.
Quais são as respostas que nem mesmo o gordinho simpático sentado
debaixo da placa “Informações” pode nos dar?
Nada mais está em branco agora, tudo está
preenchido com perguntas.
São perguntas pretas que surgem nas cabeças das pessoas
brancas e perguntas brancas pintando nas
cabeças das pessoas pretas.
Os PMs perguntam tudo a todos apenas com o olhar,
eles têm esse direito que, igualmente, os exime de respostas.
Um policial não sabe responder nada, a não ser apontar
a direção a seguir sem mesmo conhecer o norte nos mapas.
Todas estas pessoas buscam respostas vazias
cheias de números que nada significam.
Deus é apenas uma palavra em branco e preto
cerzida no tricô que dona Luzia
acaba de terminar.
O registro geral tem 9 números, assim como a data de meu
aniversário é dia 9, mas nenhum deles
– os números ou os dias –
registram a nossa dor.
Eu publiquei 6 livros e nenhum deles
consta em meu atestado de antecedentes criminais,
o que indica haver algo errado com a Justiça
ou com a Poesia.
Lá fora o sol saiu, derretendo a bruma, e a tarde
chegou ao seu ponto final no mesmo tempo
em que a senha de dona Luzia foi chamada.
Nada mais vai nos redimir, nem mesmo o sol tardio
ou a loteria federal.
A vida pode ser só isto, perder a vez
quando o painel te chama e você não vê
porque escreve um poema.





do joca

sexta-feira, 17 de abril de 2009

Separar-se é ter a residência invadida.
Conferir peças na sala, armário,
carteira, com pouca noção exata
do que foi embora.
Olhar desconfiado
aos objetos que viram
e nada dizem.

Separar-se, uma porta
arrombada por dentro.





fabrício carpinejar
("Cinco Marias", Bertrand Brasil, 2004)

quinta-feira, 2 de abril de 2009

Cubo

fumávamos insônia. com
a manhã tagarelando
centímetros antes de nossos
pés expostos, restou pouco além
da pressuposição de que isso,
o sopro,
alento quase clandestino das
primeiras e mais emergenciais
horas do dia, encapsulou-se
numa drágea de vazio.



renato mazzini

sexta-feira, 27 de março de 2009

bocê guarda a sua dor
en el fundo de la entraña
non fica fazendo manha
aguenta firme todo esse horror

bocê non finge u dolor que sente
real demais – parece ficción
a dor que dói sem doer un corazón
nem bocê nem ninguém entende
bocê sofre calado la dor que non entende

transforma ele em rima
em mel, em olhos abertos, em endorfina
la dor quase nem se siente

entre el futuro y tudo lo mais que embolorou
bocê esconde legal a sua dor




douglas diegues

quinta-feira, 26 de março de 2009


sem acaso, por Joan Brossa

quinta-feira, 19 de março de 2009

Prova

Traçada em vermelho sangue, a nota, sob
o triângulo retângulo formado
por uma dobra ao canto superior
direito da folha de papel almaço
pautado que suportara aquela prova
final de matemática, reprovava-o.
Justa recompensa para quem em toda
aula refolhando-se em si mesmo, sáfaro,
ensimesmado e contudo alienado
de si, não reconhece jamais a imagem
pura que dele o duro espelho cifrado
da matemática, ao refletir, refrange.
Distrai-se a ouvir sirenes, risos de moças
lá longe, lotações, bondes, bicicletas
a fugir da escola rumo a nebulosas
destinações. Vê que esqueceu a caneta.
Acha um toco de lápis que com os dentes
e as unhas aponta e, surdo para leis
que alguém que não ele mesmo delibere –
gênio, deus, demônio, anjo, monstro ou rei –,
debruça-se em seu caderno a rabiscar
quiçá uma gramática especulativa
ou uma característica universal
excogitada por via negativa
e abstrusa, e acintosamente descura
das matérias do curso e dos professores
e alunos que o cercam e jamais capturam.

A sineta toca. Pelos corredores
pensa no pai, na mãe, na avó, no vexame
e na decepção de todos. Seu fastio
é enorme: despreza a vida e a gravidade
com que a encaram. Pondera o suicídio
e se sente mais leve. Pode atirar-se
do terraço do prédio do consultório
do seu dentista, alto sobre a cidade.
Fora da escola toma um sorvete e um ônibus
até o ponto final, no centro. Caminha
até o edifício, pega o elevador
até o último andar, depois ainda
galga um lance de escadas e alcança ao pôr-
do-sol a cidade alâmbar a seus pés.
Decide escrever uma carta ou uma nota
no próprio papel da prova, mas cadê
o toco de lápis? Largara-o na escola.
Resolve deixar para alguma outra hora
o suicídio. Dobra o papel, desdobra,
dobra e o solta a dar voltas, revoltas, voltas
acima de todas as coisas, gaivota.


do antonio cícero, no escolhas afectivas.

quarta-feira, 11 de março de 2009

quinta-feira, 5 de março de 2009

...uma semana depois: Plínio Marcos (de rebordosa) na Sapucaí.

"Em 1964, os novos detentores do poder tinham interesse em mostrar ao mundo que o povo brasileiro estava alegre e feliz. E por isso, iniciou uma campanha de incentivo ao carvaval, para atrair turistas, e descarregou dinheiro nas escolas de samba por dois motivos demagógicos. O primeiro era que, com dinheiro, as escolas de samba poderiam ostentar um padrão de luxo que os turistas aceitassem, por se parecer a uma cópia dos seus brilhos feita por bárbaros. E o segundo, por saber que, escondida sob lantejoulas e missangas, a miséria das pessoas que desfilariam para gringo ver ficaria disfarçada. Mas, nem eles por certo poderiam contar com o apoio inconsciente que artistas ditos progressistas, estudantes e a classe média iam lhes dar. Essa gente semi-intelectualizada, assombrada com a repressão violenta por parte da ditadura, se acanhou e foi perdendo seus próprios espaços de manifestação. Ficou naturalmente carente, desorientada, sem bússola espiritual. E, na ânsia de se afirmar, foi facilmente envolvida pela propaganda das escolas de samba e foi espiar a coisa de perto. Claro que o povão, antes como depois do golpe, continuava o mesmo. Na verdade, nem perceberam a diferença entre o governo que havia antes e o de depois do golpe. Como já disse, nenhum governo, desde que a nação brasileira foi fundada, emanou do povo. Por isso, com a ditadura que empolgou o poder na força das armas, ou com a ditadura instalada no poder por maquinações econômicas, para o povão lesado sempre houve violência, injustiça, impedimentos mil, para que ele se organizasse: prisões arbitrárias, tortura, fome, desemprego, tudo. Sendo assim, quando a burguesia foi se chegando nas escolas de samba, encontrou o povão como sempre. Sofrido, mas sabendo se expandir, se comunicar, amar dentro das suas precárias condições de vida. Então, padece, tem a alma em farrapos, lanhada por dores atrozes, mas sorri. E o burguês se admirou disso, dessa alegria, dessa fibra, dessa coragem. Ficou encantado com a hospitaleira acolhida dada a ele por aquela gente humilde dos subúrbios. Já os sambistas se entusiasmavam com os visitantes. Eles vinham, pagavam ingresso, gastavam na birosca das quadras e ainda batiam palmas. Uma beleza, parecia para aquela gente ingênua. E dentro dessa ingenuidade, eles se abriram sem nenhuma defesa. Os burgueses, por necessidade de afirmação, mas com a pretensão de ajudar, começaram a impor seus valores culturais, em detrimento da cultura popular. De saída, trouxeram professores de história das universidades para fazer enredos para o carnaval, depois professores de português para corrigir os erros de ortografia nas letras dos sambas. Atraíram cronistas mundanos, artistas e intelectuais decadentes para julgar os sambas. Daí pra frente, foi a zorra total. Vieram artistas plásticos para desenhar fantasias e bolar as alegorias, vieram coreógrafos para dar passos marcados para as alas, vieram compositores das rádios, veio a multinacional para gravar os sambas que estivessem dentro dos padrões que eles achassem consumíveis. Para encurtar o casao, de repente, o único que não era necessário na escola de samba era o sambista. Milionários, artistas da televisão, intelectuais, políticos eram os donos das escolas. Gente do morro só servia para bater tamborim, empurrar alegoria e carregar calda de fantasia das madames. O povão foi sendo marginalizado dentro do seu prórpio espaço. Foram sendo contratados para, na hora de folga, darem segurança nas quadras. Eram orientados do mesmo jeito que são na polícia: impedir que quem tem seja molestado por quem não tem. Nas quadras, os leões-de-chácara davam sempre razão para quem tinha dinheiro para gastar. E esses, evidentemente, eram os invasores. Com isso, o sambista foi se afastando. Só que na escola de samba, como em todas as artes, há uma coisa que o dinheiro não consegue inventar: o talento. Então, a situação encardiu com o afastamento dos sambistas. O jeito foi apelar para o poder econômico. Os dirigentes das escolas, politiqueiros escrotos, banqueiros de bicho, ricos de projeção social, passaram a contratar os sambistas. Mestre-sala, porta-bandeira, puxador de samba, batuqueiro, só eram recrutados com pagamento. Só que, pra um povo generoso como o nosso, trabalho é trabalho e diversão é diversão. Desde que o samba passou a ser emprego, deixou de ter graça. "Deixa eu tocar meu tamborim até me acabar" , é uma coisa. "Toca aí esse tamborim até se acabar", é outra coisa. E a partir daí foi uma loucura. Teve escola de samba que instituiu livro de ponto para os sambistas, para forçá-los a não faltarem e nem chegarem atrasados nos ensaios. Mas teve coisa pior. Por mais que a burguesia, em prosa e verso, afirme que quem nasce no morro é sambista, isso não é verdade. Smbista é um artista. E como em qualquer comunidade, os dons são diversificados. Deus não dota a todos com todos os dons. Uns sambam, outros jogam bola, outros entendem dos santos, outros tiram a carteira do bolso do rico com perícia, outros usam a força física para assaltar, outros são marceneiros, pintores, encanadores, enfim, cada um sabe um pouco. Só Deus sabe tudo. E seria bom que cada ser humano fosse integralmente respeitado pelo pouco que sabe, que é sempre pouco, por maior que seja a sua sabedoria. Mas, assim não se dá na sociedade de consumo. E assim não se deu nas escolas de samba. Quem tocava surdo, pandeiro ou tamborim tinha serventia e foi contratado para animar ensaio, para empurrar a escola na avenida. Os outros, que costumavam ir lá brincar, dançar samba como lazer, pular, curtir, não tinham serventia. O preço alto dos ingressos os impediu de entrar nas quadras. Então se deu uma onda de violência ao redor das escolas de samba. Alguns poucos, feridos nos seus brios, partiram para revidar a afronta com agressões aos visitantes. Roubavam seus carros, furavam os pneus, assaltavam quem chegava e quem saía das quadras. Os dirigentes das escolas nem vacilaram. Exigiram ação pronta e rápida da polícia. E ela veio, e veio mais ainda. Veio a ação do Esquadrão da Morte. Com mais armas, com maior contingente humano, com garantia de impunidade, em dois tempos a área estava limpa. Só restava um povão lesado, sem perspectiva, sem espaço de manifestação espontânea, desarmado, desvinculado da própria cultura (...)A classe média foi desalojada dos seus espaços naturais pela ditadura militar. Em vez de se defender, fugiu e foi fazer a mesma coisa com os segmentos abaixo dela. Usou o dinheiro, impôs valores culturais, usou a força das armas para garantir as ditadura que começou a exercer no seu novo espaço. Sei que havia gente generosa que acreditava que com isso estava ajudando o desenvolvimento do povo. Mas a generosidade se anula pela pretensão de quem se sente o iluminado, o dono da verdade, o predestinado a salvar os outros."





Plínio Marcos, em debate com os espectadores da sua peça "Jesus Homem", registrado no livro "Jesus Homem" (1981).

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

I

Nave
Ave
Moinho
E tudo mais serei
Para que seja leve
Meu passo
Em vosso
Caminho




Hilda Hilst, no Trovas de muito amor para um amado senhor (1960)

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

angra

Angra desolada, dia que não raia
Barcos submersos, rochas de atalaia.
Redes agonizam pelo chão da praia,
Lemes submissos, dia que não raia azul.
Nuvens de ameaça, lua prisioneira.
Águas assassinas, chuva carpideira.
Volta ao porto o corpo morto
De outro moço:
Cruz de carne e osso
Que tentou fugir no mar.
Asas invisíveis sobre o meu silêncio
Facas dirigidas contra o que eu não tento,
E hoje o mar de Angra
Sangra dos meus olhos
Precipício aberto
De onde me arrebento.




joão bosco e aldir blanc

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

Episódio

Ele tinha o costume de gesticular seu pensamento,
de sorte que estar parado era já ter compreendido
ou não ter dúvidas. Foi um abalo enorme quando se
deu o que conto,
porque ultimamente ocupava a compreensão em tomar
os remédios,
não comer sal, medir cor e volume de sua urina difícil.
Sem que ninguém suspeitasse ficou em pé na sala
e começou a cantar, pondo e tirando da jarra o galhinho
de flor,
a voz como antes, firme, alta, grossa, anterior
a qualquer debilidade do seu corpo.
Um susto às avessas do susto foi o nosso,
porque a barriga dele continuava altíssima e alagava
a mina
rompida de sua perna. Fugimos como nas guerras.
Um de nós foi chorar na privada, outro no quintal,
eu inventei uma barata pra matar com um chinelo.
A alegria dele desertava, quase, do que fosse
uma alegria humana e não estávamos à altura de
entendê-la.
Sofrer era muito mais fácil.






adélia prado

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

ridículo,

cantando baixo, com os olhos em lágrimas,
acabou se cortando na garrafa que atirara ao muro.







franklin nunes

sábado, 17 de janeiro de 2009

A poesia

Hoje fui ao banco
e um pé d’água
daqueles
me acertou
no meio do caminho.
Como chovia até
dentro do guarda-chuva
e eu já estivesse ensopado,
resolvi voltar pra casa.
Então, ao pisar
o meio-fio, a enxurrada
arrastou minha
havaiana.
Escalei a rua de volta
por um quarteirão inteiro
somente com
uma
sandália
no pé
e daí a abandonei
à sua própria
sorte.
Observei-a
por instantes
desaparecer no vórtex
das esquinas
e pensei
que em algum rio
subterrâneo
da cidade
deveria haver
um cemitério
de havaianas
afogadas
pela chuva.
Cheguei de novo
em casa devendo juros
altos
(não consegui
pagar
as contas),
com roupa e documentos
encharcados;
então, de repente,
o aguaceiro cessou
e o sol saiu,
iluminando meus
pés frios.


do joca
Com barras de aço os outros quebraram a alta jaula de vidro onde o peixinho dourado dela estava dormindo. Destruição. Alagamento. A cidade e todos os juízes já estão cobertos de lama. Arrastado pela enchente, ele passa sob os olhos verdes de uma mulher que uma vez já lhe encendiou os sentidos.




de Alain Lance, no blog do renato mazzini.

segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

PERFEITOS ESTRANHOS BLUES

hoje dei de cara com uma pessoa
na mesma casa
em que nós
anos atrás

nem sei
ninguém falou
esquecemos os nomes
um do outro

e nos afastamos
sem dizer nada
perfeitos estranhos novamente




do rodrigo garcia lopes

domingo, 11 de janeiro de 2009

véi dorivá:

- roupa é para os fracos.

sábado, 10 de janeiro de 2009

Meu ego

Por favor meu ego
Não dê força ao prego
Que nos põe contra a parede
Pra nos afogar de sede

Chove chuva na sua boca
Você não bebe

Há palavras, existem letras
Mas você não forma
As frases loucas que cultiva por aí

Fale pelos cotovelos, e pelos joelhos
Me critique sem razão
Se omitir não vale à pena

Mas não polua minha cultura
Não venha dividir comigo sua auto-censura
Me desencontre, não me prostitua
Se não seremos mais uma carcaça em desgraça por aí






erasmo e robertão

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

domingo, 4 de janeiro de 2009

- NÓ:

nada: fenda-funda:
gula pálida: sangue-suga:
ânsia-criança (desaparecida) -

sábado, 3 de janeiro de 2009


"poema de marcos prado com lay-out de seu cunhado solda."

quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

castástrofe

totens de prata náufraga,
piratas em terra sedentos
aos tambores da dança da chuva:
sem rum(o)
gigante e meteórico
granizo veloz geofágico