terça-feira, 30 de dezembro de 2008

Despiste para resoluções de ano novo

de sua parte agora
poderia ruir-se o mundo
em estilhaços
pequenos absurdos
tintura descamada ou
pele de que se ausentasse
o tom corado por
um lycra orgânico albino;
não interessava-lhe
mais o gesto de sondar
os olhares e as
mentes, as gentilezas
miméticas, o dar de mãos
ou ombros,
a secura na garganta ou
a vazão de um punhado
de coisas gentis
por ditas.

esperava chegar o
ônibus, aguardava paradas,
cumpria um desejo
secreto de faltar
ao trabalho, havia –
tantas outras vezes antes –
abraçado a inércia como
a um irmão e,
agora algum aplauso,
tornava ao queixume,
esperava condolência
desejava o abraço de
um banco de parque
enquanto
desconecto
se doava ao encanto
ínfimo e sísmico
dos fones de ouvido.
parava
à própria sorte
mascando um começo
de término, um retrocesso
à infância, uma
viagem entre paletas,
e fosse como fosse o ônibus
não chegava
o som das rodas velhas não
chegavao rugido do motor –
tetânico, até – não
entrava pela rua em que
como os favores paralisados
de um eunuco
detinha-se sua visão
e o jornal de ontem
um desarranjo vascular
em perceber a
data
um despiste de olhos
para quando
estivesse no maldito ônibus
que
não chegava
parecia fazer coçar
mais as mãos
os dedos, o punho
(como a pulseira
plástica de um relógio)
e se algum bom dia
viesse, rasante, sorrateiro entre
as deformações das outras
falas matinais
ele seria ignorado.
não há ônibus,
não há contra-espera,
não há espaço para
a nota de um mísero
número de telefone
não há, visível, nenhum
mendigo catastrofista
com placa anunciando o fim.


do renato mazzini


intempéries, por franklin nunes

sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

Declaração de fim de tarde

tudo isso é só porque você me guia
cega-surda-muda
no fio de uma corda bamba
sem guarda-chuva
porque você me abraça de um jeito que eu gosto muito
e não ri das minhas piadas sem graça
porque a gente bebe garrafas de vinho e cerveja
dentro de uma péssima segunda-feira abafada
porque somos dois porcos na santa ceia
sem receio algum de parecermos santos.



luana vignon escreveu sobre minha saudade piegas

quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

O ANJO DO ÁCIDO ELÉTRICO

o anjo sujo, esfarrapado
remela nos olhos
cabeça feita
bate as asas sob o céu lilás
:
luas se dissolvem
(comprimidos de sonrisal
na fornalha da noite)
música que não cessa
minha mão dentro da sua
veias são nervuras
golfinho saltando
na pele das costas
vênus vestindo
um manto de água
a ninfa chapada
de olhos elétricos
cores girando
no abismo sem fundo
dança de estrelas
no teto da sala
dois sóis em cada ontem
três vozes
na voz de quem cala





do ademir assunção, no blog do chacal

sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

estojos

(é primavera e os morcegos estão parindo)
a boca de Mariana finalmente esfriou,
livro-me dela no corredor do São Miguel e Almas

encontro a capela 3-B, Olga (anote: antes de Mariana),
em prováveis catorze anos, segura a mão de um homem rico,
aguardo-a sair, oriento-a até o jardim escuro

escondidos atrás da caravan da funerária,
deito-a sobre os ladrilhos, encosto meu olho
direito aberto no seu esquerdo, choro

“tuas lágrimas ardem”, ela diz,
aguardo ajoelhado, segurando-lhe as mãos
(as nuvens cobrem a lua)

depois de minuto, pergunto seu nome,
já com voz diferente, responde “Lúcia”
e sorri como se caçoasse de um inexperiente


do paulo scott, no blog do guiga

quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

"the world is a vampire"

terça-feira, 2 de dezembro de 2008


por Isabel Santana, no blog do Joca.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

desapego - lado B

"Foi um doloroso despertar. Por que as coisas eram tão erradas assim? As perguntas que eu me fazia desde menino um sem-número de vezes subiram novamente a meus lábios. "Por que todos nós somos oprimidos pelo dever de destruir tudo, mudar tudo, confiar tudo à impermanência? É a esse dever desagradável que o mundo chama vida? Ou sou eu o único para quem isso é um dever?" Pelo menos não havia dúvida de que eu era o único a considerar o dever como uma carga pesada.
Finalmente falei:

- Então, você vai embora...Mas claro que mesmo que ficasse aqui, eu teria que partir dentro de pouco tempo...
- Para onde você vai?
- Resolveram mandar-nos viver e trabalhar em alguma fábrica novamente, no começo deste mês ou em abril.
- Mas uma fábrica... Vai ser perigoso, com os ataques aéreos e tudo.
- Sim, vai ser perigoso - respondi desanimado.

Despedi-me tão rapidamente quanto possível..."


trecho do livro "Confissões de uma máscara", de Yukio Mishima.

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

O pássaro voou
e a distância ficou imensa-
mente branca

Bird was gone/ and distance grew/ immensely white





jack kerouac

tradução: rodrigo garcia lopes

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

terraço

aqui te apresento
à vista mais bonita da cidade

os relógios da rua alternam
hora e temperatura
meus olhos flutuando
com a estranha certeza
de que você dobra a esquina

nunca se deve confiar
em quem nunca, nunca
se deve confiar em quem nunca
escreveu uma carta de amor



Alice Sant'anna

terça-feira, 18 de novembro de 2008

alcoolismo, estigmas, existencialismo, fim de semestre.

(...) o Genoma Humano fez cintilar a expectativa de que uma gama de problemas que costumamos atribuir à cultura ou à educação, isto é, à formação humana do ser humano, poderia ter bases genéticas - e assim as poderíamos identificar e quem sabe resolver. Por isso é que pode mudar a linha divisória entre natureza e cultura. As escaramuças de fronteiras continuariam, mas o traçado delas seria outro. Espanta-me que essa não seja a principal discussão hoje nas ciências humanas. Se o conjunto de propósitos reunido no Projeto Genoma Humano se confirmar, o papel das humanas diminuirá. As disciplinas mais afetadas serão provavelmente as mais ligadas à idéia de cultura, a antropologia e a psicanálise. Por isso mesmo, elas deveriam conhecer e discutir melhor o DNA.

Evidentemente, se as expectativas do projeto derem certo, deveremos ser os primeiros a aceitar seus resultados. Não se trata de combatê-los em nome de qualquer corporativismo de área. Mas precisamos discutir o que isso significa.E por isso devemos explicitar os argumentos que fazem muitos de nós sermos algo céticos em relação às promessas do Genoma Humano. Em primeiro lugar, a publicação dos seus resultados em fevereiro de 2001 foi um anticlímax. Esperava-se que a decifração do genoma resolvesse uma série de mistérios sobre o ser humano; viu-se que falta ainda muita pesquisa. Por isso, embora a mídia de divulgação científica não tenha propriamente feito a crítica daquelas expectativas, ela discretamente reduziu o alcance dado a elas. Três anos atrás, o Genoma Humano aparecia como uma enorme promessa, um divisor de águas; hoje, um pouco menos.

Mas ele haverá de trazer resultados, que espero permitam vencer muitas doenças e insuficiências humanas. Pessoalmente, sou entusiasta dessas perspectivas. Porém, devo expor qual o grande argumento para o ceticismo das humanas: há uma enorme tendência do ser humano a querer considerar-se coisa, objeto. Aceitar que somos indeterminados naturalmente, que seremos lapidados pela educação e a cultura, que disso decorrem diferenças relevantes e irredutíveis aos genes é muito difícil. Significa aceitarmos que há algo muito precário na condição humana. Parte pelo menos dessa precariedade ou indeterminação, alguns chamarão de liberdade . Porém, nem mesmo a liberdade é tão valorizada quanto se imagina. Ela implica responsabilidades.

E diante disso é comum desejar-se algo que resolva nossos problemas independentemente de nós mesmos. São inúmeros os relatos de psicoterapeutas, psiquiatras e psicanalistas sobre pessoas que querem "curar" seus problemas psíquicos com um remédio. São também incontáveis os doentes que fazem exame após exame sem encontrar etiologia física para seus males, levando o próprio médico a recomendar uma terapia. Parece que se busca conforto na condição de coisa. Se eu for um objeto, isto é, se eu for natureza , meus males independem de minha vontade. Aliás, o que está em discussão não é tanto o que os causou, mas como resolvê-los: se eu puder solucioná-los com um remédio ou uma cirurgia, não preciso responsabilizar-me, a fundo, por eles. Tratarei a mim mesmo como objeto.

A postura das ciências humanas e da psicanálise é outra, porém. Muito da experiência humana vem justamente de nos constituirmos como sujeitos. Esse papel é pesado. Por isso, quando ele entra em crise - quando minha liberdade de escolher amorosa ou política ou profissionalmente resulta em sofrimento -, posso aliviar-me, procurando uma solução que substitua meu papel de sujeito pelo de objeto. Um antidepressivo pode ter essa singela função. Quando tomo um Prozac ou um Lexotan, renuncio à posição de sujeito da minha vida psíquica e converto-a em objeto de ordem natural.

Sabemos todos, ainda mais numa sociedade estressada e histérica como a nossa, como é difícil sustentar a responsabilidade e a liberdade pela vida pessoal. Daí que se deseje a passividade, a renúncia à liberdade (...)



Renato Janine Ribeiro é professor titular de Ética e Filosofia Política da Universidade de São Paulo e autor, entre outros livros, de A Sociedade contra o Social - o Alto Custo da Vida Pública no Brasil.


*texto publicado na íntegra pela revista Fapesp nº86.

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

A Explicação Parcial

Parece que faz tanto tempo
Desde que o garçom levou meu pedido.
Lanchonetezinha medonha.
Lá fora, neve caindo.

Parece que escureceu
Desde a última vez que ouvi a porta da cozinha
Atrás de mim
Desde a última vez que notei
Alguém passar na rua.

Um copo de água gelada
Me faz companhia
Nesta mesa que eu mesmo escolhi
Ao entrar.

E que vontade,
Que baita vontade
De bisbilhotar
A conversa
Dos cozinheiros.


Charles Simic



(Trad.: Renato Mazzini)


terça-feira, 11 de novembro de 2008

O enigma de Hempel

todo corvo é preto

e cada corvo preto

confirma o negrume dos corvos.

se todo corvo é preto então

todo não-preto é não-corvo

e se todo não-preto é não-corvo

então todo corvo é preto.

todo corvo é preto

todo não-preto é não-corvo

e cada não-preto não-corvo

- cada folha verde cada onda

azul cada gota de sangue -

prova o negrume dos corvos.



Antônio Cícero

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

Do Desejo

Quem és? Perguntei ao desejo.
Respondeu: lava. Depois pó. Depois nada.


III

Colada à tua boca a minha desordem.
O meu vasto querer.
O incompossível se fazendo ordem.
Colada à tua boca, mas descomedida
Árdua
Construtor de ilusões examino-te sôfrega
Como se fosses morrer colado à minha boca.
Como se fosse nascer
E tu fosses o dia magnânimo
Eu te sorvo extremada à luz do amanhecer.


Hilda Hilst, 1992.
foto: Cássio Rodrigues e ela, Grécia, 1957.

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Torso





por Gerhard Richter, 1997

terça-feira, 4 de novembro de 2008

quem acha o bukowski nojento põe o dedo aqui---> (_*_)

Para dois

Soava assim
Sem ter sabor
Um som sem sal
Um som sem cor
Não tinha nem
Como se impor
Um som assim
Indolor
Depois foi só
Saber de cor
E repetir
Sem tirar nem pôr
Sim!

Soava assim
Sem ter sabor
Um som sem sal
Um som sem cor
Mas com você
Com seu calor
Aquele mínimo de som
Ganhou valor
Foi tão bom!
Pra nós
E o mesmo som
Ouvi depois
Era uma trilha
Nem conheço
Quem compôs
Pois o som enfim
Se impôs
Era um som
Para dois



Dante Ozzetti e Luiz Tatit

sábado, 1 de novembro de 2008

Vida noturna

Acendo um cigarro molhado de chuva até os ossos
E alguém me pede fogo - é um dos nossos
Eu sigo na chuva de mão no bolso e sorrio
Eu estou de bem comigo e isto é difícil
Eu tenho no bolso uma carta
Uma estúpida esponja de pó-de-arroz
E um retrato meu e dela
Que vale muito mais do que nós dois
Eu disse ao garçom que quero que ela morra
Olho as luas gêmeas dos faróis
E assobio, somos todos sós
Mas hoje eu estou de bem comigo
E isso é difícil
Ah, vida noturna
Eu sou a borboleta mais vadia
Na doce flor da tua hipocrisia



João Bosco e Aldir Blanc

quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Sou uma criança e não entendo nada

antigamente quando eu me excedia
ou fazia alguma coisa errada
naturalmente minha mãe dizia
ele é uma criança, não entende nada
por dentro eu ria satisfeito e mudo
eu era um homem, entendia tudo

hoje só com meus problemas
rezo muito, mas eu não me iludo
sempre me dizem quando eu fico sério
ele é um homem e entende tudo
por dentro, com a alma atarantada
sou uma criança, não entendo nada



(Giuseppe Ghiaroni/Erasmo Carlos)

quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Retrato de Lewis Payne





por Alexander Gardner, 1865.

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Rebento

Rebento
subtantivo abstrato
O ato, a criação, o seu momento
Como uma estrela nova e o seu barato
que só deus sabe, lá no firmamento
RebentoTudo o que nasce é Rebento
Tudo que brota, que vinga, que medra
Rebento raro como flor na pedra,
rebento farto como trigo ao vento
Outras vezes rebento simplesmente
no presente do indicativo
Como as correntes de um cão furioso,
ou as mãos de um lavrador ativo
às vezes mesmo perigosamente
como acidente em forno radioativo
Às vezes, só porque fico nervoso, rebento
às vezes, somente porque estou vivo!
Rebento, a reação imediata
a cada sensação de abatimento
Rebento, o coração dizendo: Bata!
a cada bofetão do sofrimento
Rebento, esse trovão dentro da mata
e a imensidão do som desse momento


gilberto gil

terça-feira, 21 de outubro de 2008

"Meu cabelo foi meio claro por muito tempo, mas passaram azeite de oliva nele até que ficasse preto.
Meus pais moravam no segundo andar da casa. Com o pretexto de que era perigoso criar uma criança num andar superior, minha avó arrancou-me dos braços de minha mãe no meu quadragésimo nono dia. Minha cama foi colocada no quarto de doente de minha avó, permanentemente fechado e abafado com odores de doença e velhice, e fui criado ali, ao lado de sua cama de doente.
Quando tinha cerca de um ano, levei um tombo do terceiro degrau da escada e machuquei a testa. Minha avó tinha ido ao teatro, e os primos de meu pai e minha mãe estavam desfrutando da folga ruidosamente. Aconteceu de minha mãe levar alguma coisa para o segundo andar. Seguindo-a, fiquei preso na cauda do sei quimono e caí.
Telefonaram para o teatro onde minha avó estava assistindo a um espetáculo de cabúqui. Quando ela chegou, meu avô foi ao seu encontro. Parou no vestíbulo, sem tirar os sapatos, apoiada na bengala que levava na mão direita, e encarou fixamente meu avô. Quando falou, foi num tom estranhamente calmo, embora parecesse rasgar cada palavra:
- Ele está morto?
- Não.
Então, tirando os sapatos e atravessando o vestíbulo, seguiu pelo corredor com passos tão seguros quanto os de uma sacerdotisa..."



trecho de "Confissões de uma máscara", de Yukio Mishima.

terça-feira, 7 de outubro de 2008

a viciada em madrugadas
roía suas últimas unhas
enquanto amanhecia
(seu cachorro, muito sensível, rosnava fobia social)

quinta-feira, 25 de setembro de 2008

"É difícil que se dê crédito ao narrador quando só se descrevem impressões. No entanto, não se pode descrever de outra forma a infelicidade de uma condição humana. A infelicidade é feita apenas de impressões. As circunstâncias materiais da vida, enquanto se consegue quase que no limite das forças, viver dentro delas, não são as únicas a explicarem a infelicidade, pois circunstâncias equivalentes, dependendo de outros sentimentos, poderiam tornar felizes as pessoas. São os sentimentos dependentes das circunstâncias de uma vida que tornam as pessoas felizes ou infelizes, mas esses sentimentos não são arbitrários, não são impostos ou apagados por sugestão, não podem ser mudados a não ser por uma transformação radical das próprias circunstâncias. Para mudá-las, é preciso primeiro conhecê-las. Nada mais difícil de conhecer do que a infelicidade; ela é sempre um mistério. Muda, como dizia um provérbio grego. É preciso estar preparado de um modo todo especial para a análise interior para perceber as verdadeiras gradações e suas causas, e geralmente não estão em estado de fazê-lo os infelizes. Mesmo quando se está preparado, a própria infelicidade impede esta atividade do pensamento, e a humilhação sempre traz como consequência a criação de zonas proibidas nas quais o pensamento não se aventura, e que estão cobertas pelo silêncio ou pela mentira. Quando os infelizes se queixam, queixam-se quase sempre sem razão sem evocar sua verdadeira infelicidade; e, além disso no caso da infelicidade profunda e permanente, um pudor muito forte detém as queixas. Assim, cada condição infeliz entre os homens cria uma zona de silêncio dentro da qual os seres humanos ficam encerrados como numa ilha. Quem sai da ilha não volta a cabeça para trás."




trecho de A condição operária e outros estudos sobre a opressão, de Simone Weil (a lúcida).

terça-feira, 16 de setembro de 2008

Barracão pegô fogo

Barracão pegô fogo/ onde nois vai morá/ abracei a isabé/ que chorava sem pará/ Barracão pegô fogo/ onde nois vai morá/ abracei a isabé/ que chorava sem pará/ Chamemos a policia/ ninguem quiz apagá/ chegô os bombeiros/ e pegaram os destroços


Adoniran Barbosa

terça-feira, 9 de setembro de 2008

a egoísta

blefar olhando nos olhos, berço da paranóia. trimilique, rangedeira, noise. uma catástrofe inteira só pra mim... solidão e enfrentamentos à parte, tão logo eles me descobrissem, pintariam em minha face a estampa corada da covardia.

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

vontade e potência

tô muito lôca/ tenho quistudá.

quarta-feira, 27 de agosto de 2008




paul klee - the golden fish

terça-feira, 26 de agosto de 2008




por franklin nunes

quarta-feira, 13 de agosto de 2008

Tróia

Toda saudade
repousa nas palavras,
tem cheiro de pinho
e ossos muito brancos.
Toda saudade:
velas arreadas
dos mastros dos batéis,
última visão da chama apagando,
canção de helenas nuas
perdida nos lábios de Ílion.
Em tudo,
o teu nome de pedra,
Saudade,
cadela morta.



MICHELINY VERUNSCHK

terça-feira, 12 de agosto de 2008

bocê guarda a sua dor

en el fundo de la entraña

non fica fazendo manha

aguanta firme todo esse horror



bocê non finge u dolor que sente

real demais – parece ficción

a dor que dói sem doer un corazón

nem bocê nem ninguém entende



bocê sofre calado la dor que non entende

transforma ele em rima

em mel, em olhos abertos, em endorfina

la dor quase nem se siente



entre el futuro y tudo lo mais que embolorou

bocê esconde legal a sua dor



Douglas Diegues

segunda-feira, 11 de agosto de 2008




por Rodrigo Albert

quarta-feira, 6 de agosto de 2008

"Belém - Revoltada com a morte de um adolescente de 16 anos por um policial militar, a população de Viseu, município paraense localizado na divisa com o Maranhão, foi para as ruas, invadiu e incendiou o fórum e a delegacia de polícia, depois de libertar todos os presos. O juiz da comarca, César Augusto Rodrigues, teve que pular o muro da casa onde mora, ao lado do fórum, para fugir do local. A residência dele foi saqueada. Todos os processos que estavam no local foram queimados, inclusive os eleitorais."

terça-feira, 5 de agosto de 2008

segunda-feira, 4 de agosto de 2008

buquê de presságios


De tudo, talvez, permaneça
o que significa. O que
não interessa. De tudo,
quem sabe, fique aquilo
que passa. Um gerânio
de aflição. Um gosto
de obturação na boca.
Você de cabelo molhado
saindo do banho.
Uma piada. Um provérbio.
Um buquê de presságios.
Sons de gotas na torneira da pia.
Tranqueiras líricas
na velha caixa de sapatos.
De tudo, talvez, restem
bêbadas anotações
no guardanapo.
E aquela música linda
que nunca toca no rádio.


marcelo montenegro

sexta-feira, 1 de agosto de 2008






E
G
O
N

S
C
H
I
E
L
E

quinta-feira, 31 de julho de 2008

A Barata

A barata
tensa
atônita
atenta
frente a folha
pegajosa do poema.
Um calafrio quase
na carapaça dura
e o poema agridoce
acenando
acendendo
dentro da madrugada escura.

O dia nasce
parindo um novo solstício
e ela, impressa,
presa no poema-suícidio.



MICHELINY VERUNSCHK

terça-feira, 29 de julho de 2008

Micropost

não dá para ser feliz assim todo dia, eu digo, e ela rebate imediatamente, arrumando a alça da camisetinha:


– “e por que não?”


e dividimos o espeto de coração de frango às gargalhadas, planejando malandragem, porque é assim que as coisas são (ou as coisas são assim porque ela se adianta às coisas?).



JOTABÊ MEDEIROS

terça-feira, 22 de julho de 2008

Uma história de borboletas

"Porque quando se é branco
como o fênix branco
e os outros são pretos,
os inimigos não faltam.

Antonin Artaud,
Citado por Anais Nin, em:
.Je suis le plus malade dês surréalistes“




André enlouqueceu ontem à tarde. Devo dizer que também acho um pouco arrogante de minha parte dizer isso assim - enlouqueceu -, como se estivesse perfeitamente seguro não só da minha sanidade mas também da capacidade de julgar a sanidade alheia. Como dizer então? Talvez: André começou a comportar-se de maneira estranha, por exemplo? ou : André estava um tanto desorganizado; ou ainda: André parecia muito necessitado de repouso. Seja como for, depois de algum tempo, e aos poucos, tão levemente que apenas ontem à tarde resolvi tomar essa providência, André - desculpem a minha audácia ou arrogância ou empáfia ou como queiram chamá-la, enfim: André enlouqueceu completamente. Pensei em levá-lo para uma clínica, lembrava vagamente de ter visto no cinema ou na televisão um lugar cheio de verde e pessoas muito calmas, distantes e um pouco pálidas, com o olhar fora do mundo, lendo ou recortando figurinhas, cercadas por enfermeiras simpáticas, prestativas. Achei que André seria feliz lá. E devo dizer ainda que gostaria de vê-lo feliz, apesar de tudo o que me fez sofrer nos últimos tempos. Mas bastou uma olhada no talão de cheques para concluir que não seria possível. Então optei pelo hospício. Sei, parece um pouco duro dizer isso assim, desta maneira tão seca: então-optei-pelo-hospício. As palavras são muito traiçoeiras. Para dizer a verdade, não optei propriamente. Apenas:
1º) eu tinha pouquíssimo dinheiro e André menos ainda, isto é, nada, pois deixara de trabalhar desde que as borboletas nasceram em seus cabelos;
2º) uma clínica custa dinheiro e um hospício é de graça.
Além disso, esses lugares como aquele que vi no cinema ou na televisão ficam muito retirados - na Suíça, acho -, e eu não poderia visitá-lo com tanta freqüência como gostaria. O hospício fica aqui perto. Então, depois desses esclarecimentos, repito: optei pelo hospício. André não opôs resistência nenhuma. Às vezes chego a pensar que ele sempre soube que, de uma forma ou outra, fatalmente acabaria assim. Portanto, coloquei-o num táxi, depois desembarcamos, atravessamos o pátio e, na portaria, o médico de plantão nem sequer fez muitas perguntas. Apenas nome, endereço, idade, se já tinha estado lá antes essas coisas - ele não dizia nada e eu precisei ir respondendo, como se o louco fosse eu e não ele. Ah: nem por um minuto o médico duvidou da minha palavra. Pensei até que, se André não estivesse realmente louco e eu dissesse que sim, bastaria isso para que ele ficasse por lá durante muito tempo. Mas a cara dele não enganava ninguém, sem se mover, sem dizer nada, aqueles olhos parados, o cabelo todo em desordem. Quando dois enfermeiros iam levá-lo para dentro eu quis dizer alguma coisa, mas não consegui. Ele ficou ali na minha frente, me olhando. Não me olhando propriamente, havia muito tempo que não olhava mais para nada, seus olhos pareciam voltados para dentro, ou então era como se transpassassem as pessoas ou objetos para ver, lá no fundo deles, uma coisa que nem eles próprios sabiam de si mesmos. Eu me sentia mal com esse olhar, porque era um olhar muito... muito sábio, para ser franco. Completamente insano, mas extremamente sábio. E não é nada agradável ter em cima de você, o tempo todo, na sua própria casa, um olhar desses, assim trans-in-lúcido. Mas de repente seus olhos pareceram piscar, mas não devem ter piscado - devo esclarecer que, para mim, piscar é uma espécie de vírgula que os olhos fazem quando querem mudar de assunto. Sem piscar, então, os olhos dele piscaram por um momento e voltaram daquele mundo para onde André havia se mudado sem deixar endereço. E me olharam os olhos dele. Não para uma coisa minha que nem eu mesmo via, através de mim, mas para mim mesmo fisicamente, quero dizer: para este par de órgãos gelatinosos situados entre a testa e o nariz, meus olhos, para ser mais objetivo. André olhou bem nos meus olhos, como havia muito não fazia, e fiquei surpreso e tive vontade de dizer ao médico de plantão que era tudo um engano, que André estava muito bem, pois se até me olhava nos olhos como se me visse, pois se recuperara aquela expressão atenta e quase amiga do André que eu conhecia e que morava comigo, como se me compreendesse e tivesse qualquer coisa assim como que uma vontade de que tudo desse certo para mim, sem nenhuma mágoa de que eu o tivesse levado para lá. Como se me perdoasse, porque a culpa não era minha, que estava lúcido, nem tampouco dele, que enlouquecera. Quis levá-lo de volta comigo para casa, despi-lo e lambê-lo como fazia antigamente, mas havia aquele monte de papéis assinados e cheios de x nos quadradinhos onde estava escrito solteiro, masculino, branco, coisas assim, os enfermeiros esperando ali do lado, já meio impacientes . tudo isso me passou pela cabeça enquanto o olhar de André pousava sobre mim e sua voz dizia: * - Só se pode encher um vaso até a borda. Nem uma gota a mais. Então vim embora. Os enfermeiros seguraram seus braços e o levaram para dentro. Havia alguns outros loucos espiando pela janela. Eram feios, sujos, alguns desdentados, as roupas listradinhas, encardidas, fedendo. Pensei que o médico ia colocar a mão no meu ombro para depois dizer coragem, meu velho, como tenho visto no cinema. Mas ele não fez nada disso. Baixou a cabeça sobre o monte de papéis como se eu não estivesse mais ali, dei meia volta sem dizer nada do que eu queria dizer, que cuidassem bem dele, não o deixassem subir no telhado, recortar figurinhas de papel o dia inteiro, ou retirar borboletas do meio dos cabelos como costumava fazer. Atravessei devagar o pátio cheio de loucos tristes, hesitei no portão de ferro, depois resolvi voltar a pé para casa. Era de tardezinha, estava horrível na rua, com todos aqueles automóveis, aquelas pessoas desvairadas, as calçadas cheias de merda e lixo, eu me sentia mal e muito culpado. Quis conversar com alguém, mas me afastara tanto de todos depois que André enlouquecera, e aquele olhar dele estava me rasgando por dentro, eu tinha a impressão de que o meu próprio olhar tinha se tornado como o dele, e de repente já não era mais uma impressão. Quando percebi, estava olhando para as pessoas como se soubesse alguma coisa delas que nem elas mesmas sabiam. Ou então como se as transpassasse. Eram bichos brancos e sujos. Quando as transpassava, via o que tinha sido antes delas, e o que tinha sido antes delas era uma coisa sem cor nem forma, eu podia deixar meus olhos descansarem lá porque eles não se preocupavam em dar nome ou cor ou jeito a nenhuma coisa, era um branco liso e calmo. Mas esse branco liso e calmo me assustava e, quando tentava voltar atrás, começava a ver nas pessoas o que elas não sabiam de si mesmas, e isso era ainda mais terrível. O que elas não sabiam de si era tão assustador que me sentia como se tivesse violado uma sepultura fechada havia vários séculos. A maldição cairia sobre mim: ninguém me perdoaria jamais se soubesse que eu ousara.

(*) Tao Te-King: Lao Tse.

Mas alguma coisa em mim era mais forte que eu, e não conseguia evitar de ver e sentir atrás e além dos sujos bichos brancos, então soube que todos eles na rua e na cidade e no país e no mundo inteiro sabiam que eu estava vendo exatamente daquela maneira, e de repente já não era mais possível fingir nem fugir nem pedir perdão ou tentar voltar ao olhar anterior . e tive certeza de que eles queriam vingança, e no momento em que tive certeza disso, comecei a caminhar mais depressa para escapar, e Deus, Deus estava do meu lado: na esquina havia um ponto de táxi, subi num, mandei tocar em frente, me joguei contra o banco, fechei os olhos, respirei fundo, enxuguei na camisa as palmas visguentas das mãos. Depois abri os olhos para observar o motorista (prudentemente, é claro). Ele me vigiava pelo espelho retrovisor. Quando percebeu que eu percebia, desviou os olhos e ligou o rádio. No rádio, uma voz disse assim: Senhoras e senhores, são seis horas da tarde. Apertem os cintos de segurança e preparem suas mentes para a decolagem. Partiremos em breve para uma longa viagem sem volta. Atenção, vamos começar a contagem regressiva: dez-nove-oito-sete-seis-cinco... Antes que dissesse quatro, soube que o motorista era um deles. Mandei-o parar, paguei e desci. Não sei como, mas estava justamente em frente à minha casa. Entrei, acendi a luz da sala, sentei no sofá. A casa quieta sem André. Mesmo com ele ali dentro, nos últimos tempos a casa era sempre quieta: permanecia em seu quarto, recortando figurinhas de papel ou encostado na parede, os olhos olhando daquele jeito, ou então em frente ao espelho, procurando as borboletas que nasciam entre seus cabelos. Primeiro remexia neles, afastava as mechas, depois localizava a borboleta, exatamente como um piolho. Num gesto delicado; apanhava-a pelas asas, entre o polegar e o indicador, e jogava-a pela janela. Essa era das azuis . costumava dizer, ou essa era das amarelas ou qualquer outra cor. Em seguida saía para o telhado e ficava repetindo uma porção de coisas que eu não entendia. De vez em quando aparecia uma borboleta negra. Então tinha violentas crises, assustava-se, chorava, quebrava coisas, acusava-me. Foi na última borboleta negra que resolvi levá-lo para o lugar verde, e mais tarde, para o hospício mesmo. Ele quebrou todos os móveis do quarto, depois tentou morder-me, dizendo que a culpa era minha, que era eu quem colocava as borboletas negras em seus cabelos, enquanto dormia. Não era verdade. Enquanto dormia, eu às vezes me aproximava para observá-lo. Gostava de vê-lo assim, esquecido, os pêlos claros do peito subindo e descendo sobre o coração. Era quase como o André que eu conhecera antes, aquele que mordia meu pescoço com fúria nas noites suadas de antigamente. Uma vez cheguei a passar os dedos nos seus cabelos. Ele despertou bruscamente e me olhou horrorizado, segurou meu pulso com força e disse que agora eu não poderia fingir que não era eu, que tinha me surpreendido no momento exato da traição. Era assim, havia muito tempo, eu estava fatigado e não compreendia mais. Mas agora a casa estava sem André. Fui até o banheiro atulhado de roupas sujas, a torneira pingando, a cozinha com a pia transbordando pratos e panelas de muitas semanas, a janela de cortinas empoeiradas e o cheiro adocicado do lixo pelos cantos, depois resolvi tomar coragem e ir até o quarto dele. André não estava lá, claro. Apenas as revistas espalhadas pelo chão, a tesoura, as figurinhas entre os cacos dos móveis quebrados. Apanhei a tesoura e comecei a recortar algumas figurinhas. Inventava histórias enquanto recortava, dava-lhes profissões, passados, presentes, futuros era mais difícil, mas dava-lhes também dores e alguns sonhos. Foi então que senti qualquer coisa como uma comichão entre os cabelos. Aproximei-me do espelho, procurei. Era uma borboleta. Das azuis, verifiquei com alegria. Segurei-a entre o polegar e o indicador e soltei-a pela janela. Esvoaçou por alguns segundos, numa hesitação perfeitamente natural, já que nunca antes em sua vida estivera sobre um telhado. Quando percebi isso, subi na janela e alcancei as telhas para aconselhá-la: - É assim mesmo . eu disse. . O mundo fora de minha cabeça tem janelas, telhados, nuvens e aqueles bichos brancos lá embaixo. Sobre eles, não se detenha demasiado, pois correrá o risco de transpassá-los com o olhar ou ver neles o que eles próprios não vêem, e isso seria tão perigoso para ti quanto para mim violar sepulcros seculares, mas, sendo uma borboleta, não será muito difícil evitá-lo: bastará esvoaçar sobre as cabeças, nunca pousar nelas, pois pousando correrás o risco de ser novamente envolvida pelos cabelos e reabsorvida pelos cérebros pantanosos e, se isso for inevitável, por descuido ou aventura, não deverás te torturar demasiado, de nada adiantaria, procura acalmar-te e deslizar pra dentro dos tais cérebros o mais suavemente possível, para não seres triturada pelas arestas dos pensamentos, e tudo é natural, basta não teres medos excessivos. trata-se apenas de preservar o azul das tuas asas. Pareceu tranqüilizada com meus conselhos, tomou impulso e partiu em direção ao crepúsculo. Quando me preparava para dar volta e entrar novamente no quarto, percebi que os vizinhos me observavam. Não dei importância a isso, voltei às figurinhas. E novamente começou a acontecer a mesma coisa: algo como borbulhar, o espelho, a borboleta (essa era das roxas), depois a janela, o telhado, os conselhos. E os vizinhos e as figurinhas outra vez. Assim durante muito tempo. Já não era mais de tardezinha quando apareceu a primeira borboleta negra. No mesmo momento em que meu indicador e polegar tocaram suas asinhas viscosas, meu estômago contraiu-se violentamente, gritei e quebrei o objeto mais próximo. Não sei exatamente o que, sei apenas do ruído de cacos que fez, o que me deixa supor que se tratasse de um vaso de louça ou algo assim (creio que foi nesse momento que lembrei daquele som das noites de antes: as franjas do xale na parede caído sobre as cordas do violão de André quando rolávamos da cama para o chão). Pretendia quebrar mais coisas, gritar ainda mais alto, chorar também. Se conseguisse, porque tinha nojo e nunca mais . quando ouvi um rumor de passos no corredor e diversas pessoas invadiram o quarto. Acho que meu primeiro olhar para elas foi aquele que tive antigamente, cheguei a reconhecer alguns dos vizinhos que nos observavam sempre, o homem do bar da esquina, o jardineiro da casa em frente, o motorista do táxi, o síndico do edifício ao lado, a puta do chalé branco. Mas em seguida tudo se alargou e não consegui evitar de vê-las daqueles outros jeitos, embora não quisesse, e meu jeito de evitar isso era fechar os olhos, mas quando fechava os olhos ficava olhando pra dentro do meu próprio cérebro . e só encontrava nele uma infinidade de borboletas negras agitando nervosamente as asinhas pegajosas, atropelando-se para brotar logo entre os cabelos. Lutei por algum tempo. Tinha alguma esperança, embora fossem muitas mãos a segurar-me. Ao amanhecer do dia de hoje fui dominado. Chamaram um táxi e trouxeram-me para cá. Antes de entrar no táxi tentei sugerir, quem sabe aquele lugar de muito verde, pessoas amáveis e prestativas, todas distantes, um tanto pálidas, alguns lendo livros, outros cortando figurinhas. Mas eu sabia que eles não admitiriam: quem havia visto o que eu via não merecia perdão. Além disso, eu tinha desaprendido completamente a sua linguagem, a linguagem que também tive antes, e, embora com algum esforço conseguisse talvez recuperá-la, não valia a pena, era tão mentirosa, tão cheia de equívocos, cada palavra querendo dizer várias coisas em várias outras dimensões. Eu agora já não conseguia permanecer em apenas uma dimensão, como eles, cada palavra se alargava e invadia tantos e tantos reinos que, para não me perder, preferia ficar calado, atento apenas ao borbulhar das borboletas dentro do meu cérebro. Quando foram embora, depois de preencherem uma porção de papéis, olhei para um deles daquele mesmo jeito que André me olhara. E disse-lhe: - Só se pode encher um vaso até a borda. Nem uma gota a mais. Ele pareceu entender. Vi como se perturbava e tentava dizer, sem conseguir, alguma coisa para o médico de plantão, observei que baixava os olhos sobre o monte de papéis e a maneira indecisa com que atravessava o pátio, para depois deter-se ao portão de ferro, olhando para os lados, depois se foi, a pé. Em seguida os homens trouxeram-me e enfiaram uma agulha no meu braço. Tentei reagir, mas eram muito fortes. Um deles ficou de joelhos no meu peito enquanto o outro enfiava a agulha na veia. Afundei num fundo poço acolchoado de branco. Quando acordei, André me olhava dum jeito totalmente novo. Quase como o jeito antigo, mas muito mais intenso e calmo. Como se agora partilhássemos o mesmo reino. André sorriu. Depois estendeu a mão direita em direção aos meus cabelos, uniu o polegar ao indicador e, gentilmente, apanhou uma borboleta. Era das verdes. Depois baixou a cabeça, eu estendi os dedos para seus cabelos e apanhei outra borboleta. Era das amarelas. Como não havia telhados próximos, esvoaçavam pelo pátio enquanto falávamos juntos aquelas mesmas coisas, eu para as borboletas dele, ele para as minhas. Ficamos assim por muito tempo até que, sem querer, apanhei uma das negras e começamos a brigar. Mordi-o muitas vezes, tirando sangue da carne, enquanto ele cravava as unhas no meu rosto. Então vieram os homens, quatro desta vez. Dois deles puseram os joelhos sobre nossos peitos, enquanto os outros dois enfiavam agulhas em nossas veias. Antes de cairmos outra vez no poço acolchoado de branco, ainda conseguimos sorrir um para o outro, estender os dedos para nossos cabelos e, com os indicadores e polegares unidos, ao mesmo tempo, com muito cuidado, apanhar cada um uma borboleta. Essa era tão vermelha que parecia sangrar



Caio Fernando Abreu

segunda-feira, 21 de julho de 2008

mas minha cabeça

me olhas fundo
te exibo gengivas ariscas
e prolongas-te grave, mas não incólume
a estas - sísmicas

gengivas -
pra interromper meus olhos fundos
de vigília e fuga
do teu hálito língua e
teus cabelos

em minha cabeça

BESOUROS

Aladas quase
cegas semi-
(es)feras
negras

chovem se acumulam
à penumbra pública

(sem que as lâmpadas
dos postes que os
alumbram de-
batendo-se em câmera

len-
ta

esforçados virados saibam
o que pensam os transeuntes
que passam por
sobre
e os esmagam
indiferentes)


WILSON NANINI

quinta-feira, 17 de julho de 2008

      
        Fm7(9) C/E        Cm/Eb D7(b9)
Ele era mil Tu és nenhum
Gm7 G/B
Na guerra és vil Na cama és mocho
Cm7(9) C#º Bb/D
Tira as mãos de mim Põe as mãos em mim



Eb7M(9)
Em7(b5/9) Am7(b5)

E vê se o fogo de_______le Guardado em mim
 Ab7(#11)
Te incendeia um pou_____co


Gm7 D/F# Dm/F
Éramos nós Estreitos nós
E7(b9) Am7(9) A/C#
Enquanto tu És laço frouxo
Dm7(9) D#º C/E
Tira as mãos de mim Põe as mãos em mim



F7M(9)
F#m7(b5/9) Bm7(b5)

E vê se a febre de________le Guardada em mim

              E7(b9/13)

Te contagia um pouco

B7(#11) / / / Bb7(#11) / / / Am7(9)

terça-feira, 15 de julho de 2008

guigalok@

ele bebe sozinho e lê poesias em voz alta
carrega nicotina pra dar à fumantes abstinentes
meu predilecto apaixonado
é o mesmo que me apunhalou com a melancolia do carnaval
e, pra falar de suas contradições
me deu um livro do dostoiévski
me apresentou a um travesti

segunda-feira, 14 de julho de 2008

Delicatessen


Hilda Hilst


Você nunca conhece realmente as pessoas. O ser humano é mesmo o mais imprevisível dos animais. Das criaturas. Vá lá. Gosto de voltar a este tema. Outro dia apareceu uma moça aqui. Esguia, graciosa, pedindo que eu autografasse meu livro de poesia, "tá quentinho, comprei agora". Conversamos uns quinze minutos, era a hora do almoço, parecia tão meiga, convidei-a para almoçar, agradeceu muito, disse-me que eu era sua "ídala", mas ia almoçar com alguém e não podia perder esse almoço. Alguém especial?, perguntei. Respondeu nítida: "pé-de-porco". Não entendi. Como? "Adoro pé-de-porco, pé-de-boi também". Ahn... interessante, respondi. E ela se foi apressada no seu Fusquinha. Não sei por que não perguntei se ela gostava também de cu de leão. Enfim, fiquei pasma. Surpresas logo de manhã.

Olga, uma querida amiga passando alguns dias aqui conosco, me diz: pois você sabe que me trouxeram uma noite um pé-perna de porco, todo recheado de inverossímeis, como uma delicadeza para o jantar? Parecia uma bota. Do demo, naturalmente. E lendo uma entrevista com W. H. Auden, um inglês muito sofisticado, o entrevistador pergunta-lhe: "O que aconteceu com seus gatos?" Resposta: "Tivemos que matá-los, pois nossa governanta faleceu". Auden também gostava de miolo, língua, dobradinha, chouriços e achava que "bife" era uma coisa para as classes mais baixas, "de um mau gosto terrível", ele enfatiza. E um outro cara que eu conheci, todo tímido, parecia sempre um urso triste, também gostava de poesia... Uma tarde veio se despedir, ia morar em Minas... Perguntei: "E todos aqueles gatos de que você gostava tanto?" Resposta: "Tive de matá-los". "Mas por quê?!" Resposta: "Porque gatos gostam da casa e a dona que comprou minha casa não queria os gatos". "Você não podia soltá-los em algum lugar, tentar dar alguns?" Olhou-me aparvalhado: "Mas onde? Pra quem?" "E como você os matou?" "A pauladas", respondeu tranqüilo, como se tivesse dado uma morte feliz a todos eles. E por aí a gente pode ir, ao infinito. Aqueles alemães não ouviam Bach, Wagner, Beethoven, não liam Goethe, Rilke, Hölderlin(?????) à noite, e de dia não trabalhavam em Auschwitz? A gente nunca sabe nada sobre o outro. E aquele lá de cima, o Incognoscível, em que centésima carreira de pó cintilante sua bela narina se encontrava quando teve a idéia de criar criaturas e juntá-las? Oscar, traga os meus sais.


Texto extraído do jornal “Correio Popular”, de Campinas-SP, edição de 01/03/1993.

domingo, 13 de julho de 2008

Hilda


"Estilhaça a tua própria medida."

quinta-feira, 10 de julho de 2008

Anticonsumo

Como vai longe o dia, Maninho,
em que a gente podia ser comum

Entre ervas burras, folhas molhadas de mamona
e salsa
a gente podia ser
simplesmente
nossas mãos nossos pés nossos cabelos
e o que queimava dentro
no escuro

Como vai longe o tempo como as águas
batendo na amurada
alegremente
como os peixes
vivendo no seu músculo
o mistério do mundo


ferreira gullar

quarta-feira, 9 de julho de 2008

sinos

uma mágoa gigantesca encarna depois do primeiro palavrão. submersos*, praguejamos até a rouquidão. bebemos em silêncio "como um pirata perdido". dormimos na mesma cama sem trocar a negligência das costas. de madrugada, um mesmo teto desaba sobre nossas duas cabeças. passa rápido. durante, pra não me perder, racionalizo: tomamos o cuidado de não deixar nada pra trás. nenhuma ofensa encruada. mas me desatina, essa liberdade. respeito que me desnuda, depois me decompõe, por fim, me dissolve. líquida, passo por entre seus dedos. mas não quero.

segunda-feira, 7 de julho de 2008

parafraseando Oagui, em seu último post

:


UM SAMBA ANTIGO SEMPRE DÓI

Depois que o carnaval passar
alguém vai varrer as serpentinas
pra debaixo de algum tapete invisível
alguém vai retirar os cacos de vidro da nossa consciência
alguém vai comprimir panos úmidos nas nossas têmporas
e nos acordar com um sopapo bem no meio da idéia.
Depois que o carnaval passar
e a banda desligar o último microfone
vai soprar esse resto de samba no fundo do copo
e uma bossinha tímida presa na sola do sapato.



Luana Vignon

quinta-feira, 3 de julho de 2008

bdcêbadfa!

quarta-feira, 2 de julho de 2008

Fica a dica

Há rumores de que a dignidade dos estudantes baderneiros não está perdida. os bares do Cesumar estão sedentos, minha gente!

segunda-feira, 30 de junho de 2008

vodka congelada

impossível como a saudade, o repetido pêndulo do tempo:
um obstinado imprimindo sua própria lógica ao louco.

O enigma de Hempel

todo corvo é preto

e cada corvo preto

confirma o negrume dos corvos.

se todo corvo é preto então

todo não-preto é não-corvo

e se todo não-preto é não-corvo

então todo corvo é preto.

todo corvo é preto

todo não-preto é não-corvo

e cada não-preto não-corvo

- cada folha verde cada onda

azul cada gota de sangue -

prova o negrume dos corvos.



Antônio Cícero.

sexta-feira, 27 de junho de 2008

o peixe morreu de sêde...

...nós, canibais, vamos comê-lo no almoço de hoje.

Os Três Mal-Amados

Joaquim:

O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato.
O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço.
O amor comeu meus cartões de visita.
O amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome.

O amor comeu minhas roupas, meus lenços, minhas camisas.
O amor comeu metros e metros de gravatas.
O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos,
o tamanho de meus chapéus.
O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e
de meus cabelos.

O amor comeu meus remédios, minhas receitas médicas, minhas dietas.
Comeu minhas aspirinas, minhas ondas-curtas, meus raios-X.
Comeu meus testes mentais, meus exames de urina.

O amor comeu na estante todos os meus livros de poesia.
Comeu em meus livros de prosa as citações em verso.
Comeu no dicionário as palavras que poderiam se juntar em versos.

Faminto, o amor devorou os utensílios de meu uso:
pente, navalha, escovas, tesouras de unhas, canivete.
Faminto ainda, o amor devorou o uso de meus utensílios:
meus banhos frios, a ópera cantada no banheiro,
o aquecedor de água de fogo morto mas que parecia uma usina.

O amor comeu as frutas postas sobre a mesa.
Bebeu a água dos copos e das quartinhas.
Comeu o pão de propósito escondido.
Bebeu as lágrimas dos olhos que, ninguém o sabia, estavam cheios de água.

O amor voltou para comer os papéis onde
irrefletidamente eu tornara a escrever meu nome.

O amor roeu minha infância, de dedos sujos de tinta,
cabelo caindo nos olhos, botinas nunca engraxadas.
O amor roeu o menino esquivo, sempre nos cantos,
e que riscava os livros, mordia o lápis, andava na rua chutando pedras.
Roeu as conversas, junto à bomba de gasolina do largo,
com os primos que tudo sabiam sobre passarinhos,
sobre uma mulher, sobre marcas de automóvel.

O amor comeu meu Estado e minha cidade.
Drenou a água morta dos mangues, aboliu a maré.
Comeu os mangues crespos e de folhas duras,
comeu o verde ácido das plantas de cana cobrindo os morros regulares,
cortados pelas barreiras vermelhas, pelo trenzinho preto, pelas chaminés.
Comeu o cheiro de cana cortada e o cheiro de maresia.
Comeu até essas coisas de que eu desesperava
por não saber falar delas em verso.

O amor comeu até os dias ainda não anunciados nas folhinhas.
Comeu os minutos de adiantamento de meu relógio,
os anos que as linhas de minha mão asseguravam.
Comeu o futuro grande atleta, o futuro grande poeta.
Comeu as futuras viagens em volta da terra,
as futuras estantes em volta da sala.

O amor comeu minha paz e minha guerra.
Meu dia e minha noite.
Meu inverno e meu verão.

Comeu meu silêncio,
minha dor de cabeça,
meu medo da morte.


João Cabral de Melo Neto

DONNA MI PRIEGA 88

        se amor é troca
ou entrega louca
discutem os sábios
entre os pequenos
e os grandes lábios

no primeiro caso
onde começa o acaso
e onde acaba o propósito
se tudo o que fazemos
é menos que amor
mas ainda não é ódio?

a tese segunda
evapora em pergunta
que entrega é tão louca
que toda espera é pouca?
qual dos cinco mil sentidos
está livre de mal-entendidos?

(Paulo Leminski)

quarta-feira, 25 de junho de 2008

tão certo como sem dúvida

oh, estéril semana de provas
eu num desapego de condenado
e o fuzilamento adiado para as férias

terça-feira, 24 de junho de 2008

" Errância - O navio fantasma

(...)não posso eu mesmo (sujeito enamorado) construir até o fim minha história de amor: sou o poeta (o recitante) apenas quanto ao começo; o fim dessa história, assim como minha própria morte, pertence aos outros, a eles cabe escrever esse romance, narrativa exterior, mítica."





(extraído do livro "fragmentos de um discurso amoroso", de Roland Barthes).

valendo uma brahma geladinha:

posso apostar que, num frio desses, tem gente tomando banho todos os dias!

quinta-feira, 19 de junho de 2008

Paulistana de verão




Branca
segura a saia
surpreendente e mínima
como quem não
se sabe mostrar


No calor
desacostumada
insegura
atravessa a rua
revela-se
quase sem querer


Beleza zl
deslocada
fingida pedra
desce da penha
retrô querendo-se moderna

O vento
leva-lhe a quase
saia
e vê-se a jóia
surpresa lapidada

que desaparece na boca quente
do metrô.




AD


Beleza distante
diz tanto
a quem te sabe
ad
mirar.







(do poeta Frederico Barbosa).

segunda-feira, 16 de junho de 2008

eu-caolha

um olho fechado e outro aberto
meu coração na encolha

sexta-feira, 30 de maio de 2008

Alocução:

cantei ressentindo tua agudez
tua mudez transversal
ando por aí verbalizando:
- vou raptar teus gritos
abafaste com as mãos o meu zunido

sexta-feira, 23 de maio de 2008

.




minha boca noturna tem gôsto de ânsia - e sopra o último pedaço de mim.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

...

Tem um quadro do Edward Hopper que mostra um homem sozinho em um quarto, sentado em uma cama, imerso num pensamento e olhando através do chão. Ao seu lado está um livro aberto. Tive a impressão de que o cara foi obrigado a soltá-lo rapidamente pra sentir-se de fato solitário e dar credibilidade ao pensamento que o tomou. Eu o procurei umas três vezes no dia em que o conheci e só ontem notei que logo atrás dele, nítida e, na mesma cama, está uma mulher deitada, nua. Eles estão reciprocamente de costas. Não por que não se suportam ou por algum desentendimento verbal, mas pela necessidade que sentem de estar em silêncio. Ambos o sentem, por isso, a presença física do outro não incomoda a nenhum.
Antes eu via o cara e o pensava solitário, apático. Depois de perceber a presença/ausência da mulher, senti que sua solidão havia duplicado e, ao mostrar-se necessária, chegou perto de ganhar vida. Aquela imagem é surda-muda e se chama "Excursão filosófica".

domingo, 13 de janeiro de 2008