quarta-feira, 26 de novembro de 2008

O pássaro voou
e a distância ficou imensa-
mente branca

Bird was gone/ and distance grew/ immensely white





jack kerouac

tradução: rodrigo garcia lopes

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

terraço

aqui te apresento
à vista mais bonita da cidade

os relógios da rua alternam
hora e temperatura
meus olhos flutuando
com a estranha certeza
de que você dobra a esquina

nunca se deve confiar
em quem nunca, nunca
se deve confiar em quem nunca
escreveu uma carta de amor



Alice Sant'anna

terça-feira, 18 de novembro de 2008

alcoolismo, estigmas, existencialismo, fim de semestre.

(...) o Genoma Humano fez cintilar a expectativa de que uma gama de problemas que costumamos atribuir à cultura ou à educação, isto é, à formação humana do ser humano, poderia ter bases genéticas - e assim as poderíamos identificar e quem sabe resolver. Por isso é que pode mudar a linha divisória entre natureza e cultura. As escaramuças de fronteiras continuariam, mas o traçado delas seria outro. Espanta-me que essa não seja a principal discussão hoje nas ciências humanas. Se o conjunto de propósitos reunido no Projeto Genoma Humano se confirmar, o papel das humanas diminuirá. As disciplinas mais afetadas serão provavelmente as mais ligadas à idéia de cultura, a antropologia e a psicanálise. Por isso mesmo, elas deveriam conhecer e discutir melhor o DNA.

Evidentemente, se as expectativas do projeto derem certo, deveremos ser os primeiros a aceitar seus resultados. Não se trata de combatê-los em nome de qualquer corporativismo de área. Mas precisamos discutir o que isso significa.E por isso devemos explicitar os argumentos que fazem muitos de nós sermos algo céticos em relação às promessas do Genoma Humano. Em primeiro lugar, a publicação dos seus resultados em fevereiro de 2001 foi um anticlímax. Esperava-se que a decifração do genoma resolvesse uma série de mistérios sobre o ser humano; viu-se que falta ainda muita pesquisa. Por isso, embora a mídia de divulgação científica não tenha propriamente feito a crítica daquelas expectativas, ela discretamente reduziu o alcance dado a elas. Três anos atrás, o Genoma Humano aparecia como uma enorme promessa, um divisor de águas; hoje, um pouco menos.

Mas ele haverá de trazer resultados, que espero permitam vencer muitas doenças e insuficiências humanas. Pessoalmente, sou entusiasta dessas perspectivas. Porém, devo expor qual o grande argumento para o ceticismo das humanas: há uma enorme tendência do ser humano a querer considerar-se coisa, objeto. Aceitar que somos indeterminados naturalmente, que seremos lapidados pela educação e a cultura, que disso decorrem diferenças relevantes e irredutíveis aos genes é muito difícil. Significa aceitarmos que há algo muito precário na condição humana. Parte pelo menos dessa precariedade ou indeterminação, alguns chamarão de liberdade . Porém, nem mesmo a liberdade é tão valorizada quanto se imagina. Ela implica responsabilidades.

E diante disso é comum desejar-se algo que resolva nossos problemas independentemente de nós mesmos. São inúmeros os relatos de psicoterapeutas, psiquiatras e psicanalistas sobre pessoas que querem "curar" seus problemas psíquicos com um remédio. São também incontáveis os doentes que fazem exame após exame sem encontrar etiologia física para seus males, levando o próprio médico a recomendar uma terapia. Parece que se busca conforto na condição de coisa. Se eu for um objeto, isto é, se eu for natureza , meus males independem de minha vontade. Aliás, o que está em discussão não é tanto o que os causou, mas como resolvê-los: se eu puder solucioná-los com um remédio ou uma cirurgia, não preciso responsabilizar-me, a fundo, por eles. Tratarei a mim mesmo como objeto.

A postura das ciências humanas e da psicanálise é outra, porém. Muito da experiência humana vem justamente de nos constituirmos como sujeitos. Esse papel é pesado. Por isso, quando ele entra em crise - quando minha liberdade de escolher amorosa ou política ou profissionalmente resulta em sofrimento -, posso aliviar-me, procurando uma solução que substitua meu papel de sujeito pelo de objeto. Um antidepressivo pode ter essa singela função. Quando tomo um Prozac ou um Lexotan, renuncio à posição de sujeito da minha vida psíquica e converto-a em objeto de ordem natural.

Sabemos todos, ainda mais numa sociedade estressada e histérica como a nossa, como é difícil sustentar a responsabilidade e a liberdade pela vida pessoal. Daí que se deseje a passividade, a renúncia à liberdade (...)



Renato Janine Ribeiro é professor titular de Ética e Filosofia Política da Universidade de São Paulo e autor, entre outros livros, de A Sociedade contra o Social - o Alto Custo da Vida Pública no Brasil.


*texto publicado na íntegra pela revista Fapesp nº86.

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

A Explicação Parcial

Parece que faz tanto tempo
Desde que o garçom levou meu pedido.
Lanchonetezinha medonha.
Lá fora, neve caindo.

Parece que escureceu
Desde a última vez que ouvi a porta da cozinha
Atrás de mim
Desde a última vez que notei
Alguém passar na rua.

Um copo de água gelada
Me faz companhia
Nesta mesa que eu mesmo escolhi
Ao entrar.

E que vontade,
Que baita vontade
De bisbilhotar
A conversa
Dos cozinheiros.


Charles Simic



(Trad.: Renato Mazzini)


terça-feira, 11 de novembro de 2008

O enigma de Hempel

todo corvo é preto

e cada corvo preto

confirma o negrume dos corvos.

se todo corvo é preto então

todo não-preto é não-corvo

e se todo não-preto é não-corvo

então todo corvo é preto.

todo corvo é preto

todo não-preto é não-corvo

e cada não-preto não-corvo

- cada folha verde cada onda

azul cada gota de sangue -

prova o negrume dos corvos.



Antônio Cícero

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

Do Desejo

Quem és? Perguntei ao desejo.
Respondeu: lava. Depois pó. Depois nada.


III

Colada à tua boca a minha desordem.
O meu vasto querer.
O incompossível se fazendo ordem.
Colada à tua boca, mas descomedida
Árdua
Construtor de ilusões examino-te sôfrega
Como se fosses morrer colado à minha boca.
Como se fosse nascer
E tu fosses o dia magnânimo
Eu te sorvo extremada à luz do amanhecer.


Hilda Hilst, 1992.
foto: Cássio Rodrigues e ela, Grécia, 1957.

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Torso





por Gerhard Richter, 1997

terça-feira, 4 de novembro de 2008

quem acha o bukowski nojento põe o dedo aqui---> (_*_)

Para dois

Soava assim
Sem ter sabor
Um som sem sal
Um som sem cor
Não tinha nem
Como se impor
Um som assim
Indolor
Depois foi só
Saber de cor
E repetir
Sem tirar nem pôr
Sim!

Soava assim
Sem ter sabor
Um som sem sal
Um som sem cor
Mas com você
Com seu calor
Aquele mínimo de som
Ganhou valor
Foi tão bom!
Pra nós
E o mesmo som
Ouvi depois
Era uma trilha
Nem conheço
Quem compôs
Pois o som enfim
Se impôs
Era um som
Para dois



Dante Ozzetti e Luiz Tatit

sábado, 1 de novembro de 2008

Vida noturna

Acendo um cigarro molhado de chuva até os ossos
E alguém me pede fogo - é um dos nossos
Eu sigo na chuva de mão no bolso e sorrio
Eu estou de bem comigo e isto é difícil
Eu tenho no bolso uma carta
Uma estúpida esponja de pó-de-arroz
E um retrato meu e dela
Que vale muito mais do que nós dois
Eu disse ao garçom que quero que ela morra
Olho as luas gêmeas dos faróis
E assobio, somos todos sós
Mas hoje eu estou de bem comigo
E isso é difícil
Ah, vida noturna
Eu sou a borboleta mais vadia
Na doce flor da tua hipocrisia



João Bosco e Aldir Blanc